Depósito de Textos

Aqui o impossível se torna realidade...


Era uma tarde normal de domingo há dez anos e eu tinha saído logo cedo para brincar no parque. Não me lembro muito bem das coisas exatamente que fiz naquele dia, exceto a partir do momento que vi os olhos de mamãe quando cheguei em casa. Estavam vermelhos como sangue. Ela tinha chorado. Muito. A sala estava cheia, alguns parentes distantes, umas tias que eu mal via durante o ano se amontoavam no sofá. Andei, atordoada por entre as pessoas que me olhavam estranho. Talvez eu tivesse feito algo errado. Algo muito errado. Papai iria brigar comigo. Mas onde ele estava que não viu mamãe chorando? Onde ele estava que deixou a tia Márcia sentar na cadeira mais desconfortável?
-Júlia, vem cá, meu amor.
Tia Mary segurou meu braço e me levou para a cozinha. Algumas pessoas estavam ajudando outras a servirem café em pequenas xícaras. Isso era um tipo de reunião? Um tipo de festa de adultos? Mas se era uma festa por que todos estavam tão tristes?
Tia Mary me levou até o quintal e sentamos juntas no banco mais distante, embaixo da figueira. Ela segurou a minha mão e alisou minhas tranças. O que estava acontecendo? Por que as pessoas estavam agindo de maneira tão estranha? Por que todos estavam de preto?
-Julia, querida. Nós precisamos conversar.
Mas antes que ela dissesse alguma coisa contra mim, eu me adiantei, coisa de criança que não quer levar bronca:
-Eu não fiz nada de errado, tia. Eu juro.
Os olhos dela pareceram mais marejados do que antes e ela simplesmente me olhou tristonha.
-Não, filha. Você não fez nada de errado. Papai do céu precisou de mais um anjo lá em cima e resolveu chamar seu pai para junto dele.
E meu mundo tinha desabado. Para uma criança de dez anos, por mais doces que as palavras posam soar, ainda dói muito. Muito mais do que qualquer coisa saber que seu herói foi embora para sempre.
Tia Mary continuou falando mais coisas doces, mas eu não prestei a mínima atenção à elas. Papai tinha ido embora. Papai tinha morrido.
-Por que ele me deixou?
-A voz de tia Mary parecia muito tremula e mais ainda incerta ao me responder:
-Ele não nos deixou. Ele só está lá no céu, ajudando a Jesus.
E então Ela passou os braços por cima dos meus ombros, num abraço confortável. Mas eu não queria o abraço dela. Eu queria meu pai de volta. Eu queria meu pai comigo.
Não falei mais nada, me senti tão mal por ter o deixado ir embora, era como se, em alguma parte eu tivesse sido castigada. Mas no fundo eu sabia que o castigo era grande demais para mim.
Tia Mary me ajudou a vestir um vestido preto, o único que eu tinha, e refez as minhas duas tranças. Mamãe não falou comigo até que eu descesse as escadas, e parasse ao lado dela.
Os cabelos loiros estavam emaranhados, um penteado desgastado. A maquiagem um pouco borrada. Mas o que me chamou atenção foram os sapatos de salto alto: mamãe tinha tirado-os, eles testavam jogados a um canto, perto da cadeira. Mamãe nunca jogava seus sapatos por aí. Agora eles não pareciam ser nada mais que sapatos.
Sentei ao lado dela, que não parava de fungar, de chorar. Eu simplesmente não consegui parar de olhar a foto de papai do outro lado da sala, numa prateleira. Eu estava em seu colo, na praia e mostrava uma estrela do mar. Isso foi há cinco anos, mas me soava como se fosse muito mais longe que isso, quase como em outra vida.
Vi tia Mary sentar do outro lado da sala, conversando baixo com algumas outras pessoas, que eu não me lembro agora quem eram. Fui até lá e fiquei parada ao lado dela, segurando a barra do seu vestido e esperando que olhasse para mim. Ela se virou e abaixou-se, me olhando nos olhos:
-Tia Mary, Deus não tem muitos anjos no céu?
-Ah, querida, claro que tem. Ele tem milhares de anjos no céu.
-A senhora poderia me ajudar a rezar e pedir que Ele devolva meu pai? Ele tem milhares de anjos lá no céu. Eu só tenho um pai.
E mesmo agora, com dezessete anos de idade, eu ainda trato a morte como se fosse aquela garotinha de dez anos, segurando na barra do vestido de Tia Mary:
Apesar de ser aceitável, ainda é incompreensível.

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Aqui você encontra alguns dos meus textos. Lugar onde sonhos são reais, amores são possiveis e a morte não pode nos deter. Sonhando e fazendo dos sonhos realidade!

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